Monday, November 12, 2012

por Ana Rebelo

from-me-with-love


6ªfeira-à-noite
em casa dos amigos vêm-se melhores filmes do que cá em casa. primeiro, porque estamos todos juntos e é sempre uma animação e depois porque cá em casa há uma série de limitações tecnológicas “Oh tia, a tua televisão não tem HD?!”. em casa dos amigos jantamos e conversamos antes de preparar a sala; luz baixa, um sofá familiar que dá para esticar as pernas e por os pés em cima. depois há os snaks, muitos e divertidos e com a vantagem de não incomodar ninguém com o ruído ou de poder interromper para ir à casa de banho. e claro, a manta gigante que ilicitamente nos sussurra entre um mar de almofadas fofas 'se isto for uma merda podes sempre encostar a cabeça e dormir à vontade que ninguém está nem aí’. já sem sapatos e instalados sobre o grande écran seleccionamos o filme desta sexta-feira que será “From Rome with Love” de Woody Allen. bom, agora que penso nisso, acho que fui eu quem escolheu o filme tal foi o entusiasmo quando o vi no menu ‘ai, há tanto tempo que ando para ver, que bom!’, esfregando as mãos freneticamente como só quem me conhece pode entender. e não contrariar.


isto-não-é-uma-crítica-de-cinema-por-isso-não-me-chateiem
gosto do Woody Allen por motivos que talvez não sejam os mais politicamente-correctos ou que façam boa figura. aliás, Woody é um dos seus melhores personagens, revendo-se em todos os outros que vão povoando a tela, uns mais do que outros. assim que o vejo dá-me vontade de  rir e à medida que os anos passam tenho a certeza que ele mirrou, neste filme temos um homem bem mais atarracado com a mesma cara de quem está sempre ausente do que o rodeia e ao mesmo tempo a gozar tudo e todos, não esquecendo a si mesmo e esse é um dos seus brilhantismos, sempre vestido à intelectualóide de outros tempos (em que noutros tempos ser intelectual era um estatuto e não como agora que basta citar um autor estrangeiro, gostar da cinefilia de Woody Allen ou frequentar os cinemas King para que nos chamem pseudo-intelectuais como se fossemos uma estirpe possuída por um desejo irracional de ter a mania mas sem que ninguém perceba, estirpe essa excelentemente retratada pela personagem de Ellen Paige, provando que no final, tudo se desfaz como num poema de Paul Yates).


eu-não-sou pseudo-intelectual-mas-gosto-de-ir-ao-King
e até acho que foi no King que vi um dos meus filmes favoritos de Woody: “Whatever works". a partir daí comecei a gostar mais deste pequenote neurótico e que facilmente poderia ser misógino se não fosse o seu amor arrebatado por mulheres complexas, como todas somos, e pela sua feminilidade. no entanto, esta Roma deixa-me um sabor bitter-sweet; se por um lado me apaixona o cenário, revivo nele a cidade rodeada de história, o amor em cada canto, a língua italiana e a sonoridade do discurso, a fotografia colorida e de uma felicidade intemporal, à estória falta-lhe o salero que nem a deslumbrante Penélope Cruz no seu vestidinho rendado vermelho consegue distrair. ok,  são várias estórias numa cidade e com muitas pessoas de sítios diferentes e que de uma forma ou de outra se entrelaçam e nos dão a sensação de que o acaso não é mais do que isso, tal como Woody sempre gosta de frisar nos seus filmes (vide Match Point, uma obra prima e totalmente inovadora no seu portefólio). mas tal como na maravilhosa cidade de Paris, não senti nenhum pózinho mágico que confirmasse a mística que o título do filme antecipa. 


Woody-quantos-whiskey-já bebeste?
uma novidade neste filme é a moral sempre muito mal disfarçada, atabalhoada até. quase que cada estória tem uma lição mas com a diferença de que a moral sempre sai vencedora e tudo acaba em bem, sem sequer existir hipótese para um desfecho diferente, aos bons a benesse e aos 'maus' o fogo dos infernos. esta moral básica confere ao filme todo um certo nonsense que não me caiu bem. mesmo porque, quando todos os personagens caem em tentação, dá a ideia de que esse é apenas um comportamento pontual e sem antecedentes que valham a pena mencionar, imaculando-os. no final, a máxima da vida cumpre-se com essa pitada de ser humano que descobre às duras penas que o caminho é sempre mais sinuoso mas que a luz está ao fundo do túnel; a infidelidade que não compensa, a de que a fama não traz felicidade, a de que o pecado não tem forçosamente de morar ao lado se ouvirmos a voz da nossa consciência, a de que tudo tem um lugar certo na nossa miserável existência e se-tens-uma-voz-de-tenor-porque-carga-de-água-haverás-de-ser-agente-funerário?!


Allen. Woody-Allen.
o genro-mal-humorado é a minha personagem favorita. dou gargalhadas de cada vez que olho o seu semblante, ele pragueja, ele revolta-se, ele não quer que o seu pobre Pai exponha o seu grande talento em prol da felicidade que uma vida modesta de agente funerário requer, intocável e absoluta. se repararem este personagem que podia ser o centro do enredo - protagonista da verdadeira estoria de amor que todos desejamos, uma cidade linda, uma desconhecida e o amor acontece - é somente um namorado/ genro/ filho muito chato e que passa o tempo todo a ser a voz da razão que como sabemos é uma voz chatíssima que nos incomoda quando menos nos da jeito. este é um auto-retrato que não deixa margem para dúvidas, estamos perante um clássico e como clássico, respeitemos o seu mérito.


(cá-em-Lisboa-temos-estórias-mais-interessantes)
Jack: "With age comes wisdom."
Jonh: With age comes exhastion."


Monday, November 5, 2012

por Ana Rebelo

encore une fois


"a sua grandeza reside na renúncia;"
a semana termina com uma hora extra. aquela hora que já não nos permite ter mais ilusões: o verão foi-se. o tempo quente, as brisas nocturnas, os mergulhos na praia enquanto o sol se põe. o calor das paixões que nunca o foram mas que o efeito do sol na pele julgou que sim. e as caipiroscas de maracujá. agora, quanto muito, sumo de tomate bem temperado ou uma chávena de chá à noite, antes de dormir. está bem, isso também não é mau, nem as mantinhas quando a chuva bate forte na janela. mas acabou-se a durabilidade. vamos passar a acordar de noite e a hora que parece termos ganho, esvai-se quando lá fora sai o ar frio pelas nossas bocas. e depois ainda há o ter de (des)arrumar novamente o guarda-roupa-só-sei-que-comecei-a-sentir-frio-nos-pés. muito frio, como se fossem congelar, como quando entramos no mar e deixamos de sentir os ossos, terei eu deixado de sentir (me)?... e foi tudo tão de repente, e não me venham dizer que não foi de repente porque eu conheço bem o verão, foi lá que eu nasci. está aberta a época das mudanças de humor, das lágrimas de crocodilo e da inevitável sensação pesada do ser.


"(...) a sua dignidade, em não pactuar com a mentira;"
"para ver, para dar/ para estar, para ter/ para ir, pra ouvir/ pra sorrir e entrar/ para rir, pra voltar/ a tentar, pra sentir/ e mudar, pra voltar/ a cair, para me levantar (...)". a sala encheu-se de braços que ondulavam como quando o mar está bravo e ruge. à frente, o poeta. a voz grave misturada com as luzes, com as costelas que se viam à distância num corpo seco e maltratado, os poetas padecem do tanto que dão de si até às entranhas, despindo-se até do seu bem-estar. foram horas de emoção, de palavras gritadas por esta multidão de braços levantados e ondulantes. seria amor pela poesia, como eu? quis ouvi-la pela primeira vez recitada pelo autor. foi outra emoção, aliás, foram muitas outras emoções que senti naquela sala cheia e que não saberia descrever aqui. no meio de tanta gente é quando mais nos sentimos sós. houve um momento em que pensei que não ia ser capaz, em que pensei e-agora?!, em que pensei que todos aqueles braços ondulantes ondulavam para um mesmo lado, sincronizados como se já estivessem estado todos ali. e novamente me apaziguei. sem ensaiar. pois é. a vida também não se ensaia, por mais estúpidos que sejamos ao tentar fazê-lo.


"(...) a sua coragem, em arrancar máscaras e máscaras."
hoje deixei-me no arrastar da preguiça (com alguns pesos de consciência). durante a tarde o repouso chega com a serenidade que a noite não traz no sono, incomodando-me com sucessivos pensamentos, os assobios do vento, as voltas na cama, apetites nocturnos e deambulações pela casa. resignada, como se alguém tivesse faltado ao nosso compromisso, volto para cama e enrosco-me como um caracol que se esconde no sítio mais seguro que conhece - a sua casca. respiro fundo mas dói-me o tórax. os dentes pesam na minha boca e daqui a pouco vai ser quase de manhã mas ainda vai ser de noite por causa da hora que ganhámos. há sempre um senão em tudo. não sonhei que os dentes me iam cair mas continuam a pesar-me, sonhei antes com coisas boas mas sem a cara das pessoas e sem saber para quem são boas, mas imediatamente soube que isso não importava se eram boas. coisas com que também sonho acordada, às vezes, mas que tento distrair para que um dia possam mesmo acontecer sem a antecipação que por vezes estraga tudo. 


"desamparado até à medula (...)"
ponho a cabeleira platinada. faço poses sexy e repenico os lábios. sou fatal, destruidora, arraso contigo num minuto e não quero saber. o meu coração é tão frio quanto a cor do meu cabelo mas sou capaz de te acolher no calor dos meus braços. fumo cigarros como uma chaminé. por instantes, só por instantes. não me importa o que pensas de mim. ponho a cabeleira preta e agarro-te para dançar. transpiro e roço-me em ti, esfregando o meu sexo no teu. gosto de andar descalça. quero levar-te para casa. quero que dances comigo toda a vida. ponho a cabeleira cor-de-rosa e os meus olhos ficam subitamente tristes. bebi muito vinho e sei que estou perdida algures, mas naquele momento, não me importa disfarçar nada. os meus olhos estão parados no tempo, entre o que sou e o que tu achas que eu sou. provavelmente vais desejar-me, com lascívia, ou então vais sentir-te impotente perante mim. se me queres, vais ter-me realmente, ainda que possas não entender tanta coisa, só e só porque nem eu mesma entendo. o que eu sei é que podemos ser aquilo que quisermos ser, especialmente se houver uma peruca a ajudar. 


"(...) afogado nas águas difíceis da sua contradição (...)"
eu podia escrever uma história assim. foi o que pensei, talvez de forma arrogante, ao ouvir a narração do texto auto-biográfico de Cláudia Clemente. eu podia pegar na minha história e escrever muitas estórias sobre ela, a minha história. é fundamental ter-se história para escrever (acho que já falei nisto algures) mas se não houver experiência, não há nada para contar. mesmo quando estamos a criar - prefiro esta à palavra 'inventar' - vamos sempre lá dentro e às vezes bem fundo à procura de um motivo para nos sentarmos a escrever. é preciso usar todos os sentidos para escrever. até podia não ser grande coisa, a estória da minha história, mas era real e ser real é o mais importante. ter alguma coisa para dizer, para contar. para transmitir e como que alguém se possa identificar. para viajar com quem quiser entrar num dos meus capítulos. cansam-me as pessoas que estão sempre a dizer que podiam e não fazem. canso-me.


("(...) morrendo à míngua de autenticidade")
shiuuu... vai começar. pressinto que tudo está apenas no início. novamente. as luzes voltarão a acender-se e o palco é imenso, nem sei para que lado me hei-de virar, de frente para uma multidão? fujo? não. dou um passo em frente, em direcção ao que parece ser uma luz branca e grande num vazio preto, não reconheço nada nas sombras, a luz ofusca-me. mas continuo, pressinto que essa luz nunca me vai largar. vai estar sempre lá, mas ainda bem, para que eu sinta com força o seu impacto, só por causa dela dou mais um passo. e outro e mais outro. passos vazios que são cheios de caminho. os aplausos trazem-me sempre de volta. 

Monday, October 22, 2012

por Ana Rebelo

o último apaga a luz



o feijão azul
"não sei cantar para lá do que o meu coração quer expressar." não sei escrever para lá do que o meu coração quer expressar. é assim que me sento aqui, todas as semanas, a sentir. a recordar. letra a letra, com algumas pausas e momentos desinspirados (o que é que interessa aos outros aquilo que sente o meu coração? toda-a-vida-me-vou-perguntar-o-mesmo), expondo-me, com as fragilidades de qualquer ser-humano mas que todos gostamos de esconder só que escrever não é compatível com isso. criando e imaginando coisas que podem ser a minha estória, a do outro ou a do outro. para se escrever tem de ser ter história, viver história, tem de se ser de todos e de ninguém e mais ainda, de si mesmo. somos ladrões de palavras, apropriadores vis do que ouvimos e sabemos e julgamos saber. somos salteadores, distorcemos, inventamos, eles, nós, estas pessoas, os que escrevemos. somos como as crianças a perguntar 'oh mãe, mas porque é que o feijão da sopa tem de ser castanho?' e a não ficar satisfeitos com uma resposta só. são estas as asas que nos dão e crescem connosco. nada a fazer. se conseguirmos não as cortar, seremos donos do poder da interpretação da realidade. é isso que conta.


a menina que lê a história da terra
imaginei-me lá sentada em cima, sim, lá em cima no meio das nuvens. com tranças longas, uma de cada lado, assim uma espécie de Doroty encantada, com os seus sapatos vermelhos brilhantes e umas mãos delicadas, afinal, segurar o livro da vida não deve ser tarefa simples, tem muitas histórias de todos e explica tudo, até porque é que os feijões da sopa não podem nunca ser azuis. se fosse uma mãe a levar o filho à escola talvez lhe tivesse contado a história da menina da terra assim: um dia ela ficou doente e a terra teve de parar por dez minutos. D-E-Z. cá em baixo as coisas ficaram catastróficas porque ninguém aproveitou para parar para pensar ou para ir fazer qualquer coisa que quisesse muito e nunca tinha feito, não, as pessoas começaram a correr, em pânico, a gritar, a atropelar-se. e tu, querido, o que farias se o tempo parasse dez minutos? porque é que reclamamos algo que na realidade não queremos? (a mãe pensaria) porque é que não deixamos, simplesmente, que nos ofereçam a dádiva da simplicidade, sem desconfiar dela? (a mãe continuava a pensar) porque é que o feijão que tu disseste que não podia ser azul, está agora entalado na minha garganta? (a mãe chora).


o mundo é do tamanho do meu quarto
êxodo: s.m. Saída; emigração em massa de um povo (ou de parte dele); (...). foi o que encontrei no diccionário de português online. queria lá encontrar também as razões deste fenómeno, assim tão bem explicadas, como num diccionário. definições precisas. não existem, seria preciso procurar mais e tantas outras palavras, algumas bem feias. quando emigrei em 2006 lembro-me de ter causado um choque na família e amigos. era tudo muito longe e muito sem sentido 'porque é que te vais meter nisso?'. eu confesso que não sabia muito bem, apenas sabia que tinha de ir. e acho que agora acontece o mesmo mas com uma certeza por vezes angustiante. agora dizem-nos que não há solução. de tanto ouvir, acreditamos mesmo que não há e lá vamos, cheios de projectos, esperançados num futuro melhor. mas não haver solução é tão definitivo quanto a morte, aquela sra de fato preto e foice ao ombro que aparece sem ser anunciada. aos que vão, a coragem de ir para o desconhecido, de arriscar, a luta. aos que ficam, a coragem do que já conhecem, a resiliência. uma certeza porém: o livro somos todos nós que o escrevemos.


open. vancancy. lights, please
senti-me como se voltasse a ter vinte anos. senti-me como se estivesse a quebrar as regras, e estava, aquelas impostas pelo mundo dos outros. e as minhas regras, as que me imponho também, de certa forma (estas sim, tão mais difíceis de quebrar). estava decidida. fui furtiva na abordagem, deslizei tranquilamente pela noite e escondi-me nas sombras dos outros, ocupados nas suas vidas, sempre ocupados nas suas vidas que nem se dão conta do que perdem, de tantas sombras que lhes espreitam por cima do cotovelo. bom, e afinal as regras também foram feitas para ser quebradas (foi a menina que escreveu no livro de história da Terra, eu agora não estou a inventar nada). nos últimos dias as regras têm-me atrapalhado, deixado a pensar se o bem que estou a fazer é a mim ou ao outro e nem sequer sei se vale a pena ter o outro em conta, o que ainda é pior. por isso, subi o muro e passei para o outro lado, onde encontrei nos braços do passado o colo do futuro.

recorta-me
há pessoas das quais nunca me esquecerei e que participaram no meu molde. para além da minha mãe e do meu pai, cujos parâmetros em que me influenciaram são bem mais evidentes e de efeito prolongado, tem sido um trabalho muito compensador ver as definições cada vez mais de perto, o detalhe, o rigor com que todos os meus traços de personalidade se definem através das pessoas com quem me relaciono. essas pessoas, algumas que ainda permanecem na minha vida e continuo a aprender com elas, outras que já não sei onde estão (sorrio ao recordar-me), ou ainda aquelas que vi apenas uma vez, uma-vez. houve pessoas com quem só estive uma vez e que bastou para que me salvassem das armadilhas do ego.


("...and then she grew up")
ultimamente oiço falar muito na cor dos sonhos. ou ausência dela. eu não sei se sonho a cores ou a preto-e-branco. e sempre que me deito, determinada a levar essa tarefa comigo no sono, acordo novamente sem saber. não faço a mais pequena ideia se os meus sonhos são coloridos ou da cor dos filmes antigos, também é bonito, aquele preto e as variações todas do cinzento e o branco muito branco. a verdade é que não sei e sinto-me frustrada por não me lembrar, nem mesmo quando acordo já lançada de caneta em punho para escrever o que sonhei, dizem que é assim que nos lembramos dos sonhos. talvez não me lembre da cor dos meus sonhos porque vivo num. cá em baixo, a escrever as estórias da terra, chocando os meus sapatos vermelhos um contra o outro.


Monday, October 15, 2012

por Ana Rebelo

A intemporalidade



o-brilho-dos-olhos
aos 14 anos disseram-lhe 'nem todos têm de ser doutores.’ e ele que não gostava nada de estudar!... aquilo foi música para os seus ouvidos. era um miúdo esperto, sem ser muito aplicado conseguia o que queria quase sempre e quase sempre saía bem no figurino. nem chegou a frequentar o 12º ano. o plano era comprar rapidamente a sua independência. ter um trabalho que lhe permitisse ser livre, que o ajudasse a acalentar todos os sonhos até conseguir transformá-los em mais do que ilusão. a pressa em viver era muita.


mulher-séria-não-tem-ouvidos
entrou na sala, logo atrás daquele homem que não parecia ter muito boas maneiras 'entra, entra. importas-te que fume? bem, a pessoa que eu procuro tem de estar sempre ao meu serviço, por exemplo, ir buscar-me os fatos à lavandaria e alugar-me uma call-girl se for caso disso'. aos 35 anos estava novamente à procura de trabalho. o administrador para quem trabalhara tantos anos tinha falecido e não havia mais lugar para ‘secretárias antigas’. aos 35 anos já tinha trabalhado treze anos, dos quais nos últimos quatro, também a tirar uma licenciatura. o seu sonho era ser gestora de recursos humanos. era a sua terceira entrevista e decidiu que não queria ser selecionada.


pela-boca-morre-o-peixe
‘eu sou o maior’, disse-o convictamente em frente ao espelho do elevador, enredado na sua música suave. os seus dentes eram brancos, o nó da gravata, impecável. ‘tu és o maior’, repetiu a si mesmo, reflectido no espelho. entrou em casa, o silêncio. depois de um dia frenético no escritório, das palmadas nas costas, dos elogios dos colegas, o silêncio. ‘vamos celebrar?’ disse para o retrato que estava em cima do piano, eram os seus pais. e o copo vazio logo se encheu de bolinhas esfusiantes. sempre desejou aquela promoção. agora tinha tudo o que queria. A cidade iluminava-se para si e o champagne acabou. tinha 46 anos e não havia canto do mundo ao qual não se tivesse habituado. excepto ao silêncio da sua casa.


nariz-arrebitado
‘sabe, eu queria muito ter sido Mãe’. os seus olhos confirmavam-no, mas logo se apagavam, resignada. ‘tenho aprendido tanto com a vida!... não sou uma mulher amarga, nem infeliz, pelo contrário. vivi tudo, vivi tanto e com tanta garra. fui sempre dona das minhas convicções. tomei opções. fossem quais fossem, na altura pareceram-me as correctas. não foi a vida que me faltou, fui eu quem a escolheu.’ tive a nítida impressão de vê-la sorrir, à medida que se recostava na cadeira. Era linda aos 65 anos. 


mãos-de-tesoura
quando casaram queriam apenas ser uma família. construir um sonho. casaram logo depois de terminarem o curso, os pais ajudaram com a entrada para a casa. Depois ele foi estagiar para um escritório de advogados, diziam que era um advogado promissor. quando foi Pai os colegas até lhe compraram uma garrafa de champagne e charutos para fumar. um dia chegou ao escritório e tinha um email a avisar que tinha de apresentar-se no gabinete dos recursos humanos às 15h. era o primeiro dia de escola do seu filho.


(estratosfera)
há dias de muito medo, confesso. quando converso com pessoas muito mais velhas, elas parecem nunca ter sentido este medo, mesmo quando a vida se lhes tornou mais dura. depois lembro-me que o medo é uma criação do nosso imaginário, o bicho-papão que nos impingiam quando queriam que comêssemos açorda ou fossemos para a cama às oito da noite. STOP. há uma força imbatível que nos tem mostrado que, a partir de determinada altura, só pode ser melhor. Dá para começar de novo?

Monday, October 8, 2012

por Ana Rebelo

a-ver-se-te-avias


alma

ela voltou. com a mesma camuflagem que só alguém que ela queira consegue desmanchar. falou-nos de si, contou-nos estórias. anda a ler um livro, um livro de que agora não me recorda nem o nome nem o autor. mas lembro-me de uma dessas estórias, uma das que vinha no livro e que ela partilhou como um tesouro bem guardado. vou tentar contar como me lembro. em tempo de pós-guerra havia uma taberna que só servia cebolas aos seus clientes. sim, cebolas. cebolas cruas, uma tábua com diferentes formatos em cima de que cortar e uma faca afiada. as pessoas chegavam, sentavam-se e era-lhes servida uma cebola que elas cortavam, cortavam até ao fim - e apesar de saberem porquê, teriam medo, de certeza, medo de descobrir e revelar as suas fragilidades - mas elas seguiam cortando, certas de que o que quer que fossem enfrentar, seria um pesadelo muito menor do que aquele que viviam.


música
ao cortar a cebola as lágrimas começavam a escorrer pelos rostos pálidos e inexpressivos e palavras de desabafo corriam pelas bocas afora, assim, como se esperassem há muito. quando se vive a angústia das memórias temos de torná-las presentes para que consigamos libertar-nos. da angústia, não das memórias, que essas querem-se como este livro, daqueles que mantemos à cabeceira e que relemos de quando em vez e que nos faz contar estórias e gostar delas. gostar de nós. continuando, um pouco de tempo depois que leva a cortar uma cebola, quando já todos choravam e conversavam uns com os outros, estranhos, conhecidos, pessoas ao acaso, a orquestra começava a tocar finalizando a purga. era então aí as pessoas levantavam-se e iam-se embora, deixando lugar aos próximos clientes. na minha imaginação chamei-lhe a Taberna das Lágrimas. ela disse que nunca mais cortaria cebolas como antes.


o sorriso
podia ser pior. podia ter inventado mil desculpas e coisas para fazer. disfarcei com suspiros profundos e tremidos. mas não tinha como, aquele nó apertado na garganta não me deixava engolir mais nada, lá vêm elas, as lágrimas, querem sair. não havia ninguém à volta, ninguém que as testemunhasse e por isso, não havia mais desculpas e deixei-me ali, a chorar. chorar é bom, chorar faz falta. diz-se. eu chorava mais do que choro e não sei porquê. eu falava mais do que falo e ouvia menos do que oiço e não sei porquê. eu desabafava as minhas angústias mais do que desabafo e não sei porquê. mas se tornar tudo presente, as angústias, consigo saber. um dia podíamos criar a nossa taberna-das-lágrimas, disse ela. a estória das cebolas que fazem chorar quando não conseguimos chorar, de uma simplicidade tão absurda e ao mesmo tempo tão acolhedora, tão serena. talvez fosse o regresso, o regresso que sempre traz a expectativa de decisões e mudanças. podia ser pior. podia chegar ao último copo de vinho e não ter nada para sentir.


the-yellow-brick-road
'procurar o caminho'. fazemos retiros, caminhamos lonjuras e vamos para sítios bonitos. dizemos que é para pensar. para 'procurar o caminho'. quando começamos a viagem a nossa preocupação reside em começar a pensar, pronto, começa agora, 1-2-3-vou-parar-para-pensar. isto escrito soa tão mal quanto dizê-lo alto. soa (acabo de dizê-lo e é como se fosse um eco, nada de novo vem, somente uma intenção). não compreendo o caminho como uma descoberta empírica que cumpre uma série de requisitos nesse tal contexto que é o nosso e que queremos mudar (na maioria das vezes, é por isso que decidimos 'procurar o caminho'). essa tomada de consciência não será já o início de um novo caminho, um aviso de que tudo o que somos nesse momento é um veículo para a mudança e nada mais? de repente, estamos tão obcecados com isto que não prestamos atenção às estrelas cadentes. também não choramos. nem sequer ligamos aos outros ou temos a possibilidade de reconhecê-los. encontraste?... ah ... distraí-me a procurar.


carícias
caminhando se encontra. na taberna-das-lágrimas refugiamo-nos da angústia, da opressão de quem nos impõe regras que não podemos aceitar, de quem nos esmaga o coração, do que nos mata a vontade. na taberna-das-lágrimas não procuramos nada a não ser o que se nos revelam, numa palavra inesperada, num olhar subitamente nublado, num abraço de alívio. paradoxalmente, seria no meio do caos que as emoções deviam atingir o seu expoente máximo. é sempre quando nos sentimos perdidos algures pelo caminho (ou sem caminho) que os sentimentos nos engrandecem. qualquer busca passa por viver apenas aquilo que é verdadeiramente bom e que prevalece como autêntico e único. um carinho de uma Mãe, o riso de um bebé. é no caos que as grandes paixões se acendem e que os desejos de partilha acontecem sem querer, querendo tanto. acredito que estamos todos perdidos. a viver o caos e sem o ombro do amor. porque esse, ele, o amor, também anda a 'procurar o caminho'.


(suor e lágrimas)
horário de funcionamento da taberna-das-lágrimas: todos os dias, slots de meia hora por dia a qualquer hora. em qualquer ombro por perto. se não tiverem um ombro por perto, agarrem-se aos vossos joelhos e lembrem-se como eles vos têm segurado de pé.

Monday, October 1, 2012

por Ana Rebelo

crónica-sem-título


olhar sem ver 
há uma espécie de inevitabilidade nos ciclos da vida, aparentemente desligados uns dos outros. hoje somos assim, estamos aqui e tudo parece encaixar (ou não). amanhã estaremos noutro lugar e seremos diferentes, não na essência, mas fruto do percurso que fazemos. e somos sempre nós, a viver várias histórias de vida seguidas, como os capítulos de um livro que lemos com vontade crescente até ao fim. nunca sabemos quando a nossa história vai terminar e talvez seja por isso que existe a esperança, para que continuemos resilientes e com garra e força nas pernas para continuar. a certeza do fim é inevitável mas só depois de escrevermos todos esses capítulos que acabam por convergir em algo (há quem lhes chame destino) e alinhar-se, como os astros, trazendo a razão de tudo o que julgámos não fazer qualquer sentido.


ouvir mais
não é fácil viver por capítulos. somos humanos e a ansiedade aflige-nos. ansiedade, a pior de todas as maleitas, aquele aperto, ai aquele aperto bem no meio do peito que nos lembra constantemente a existência de alguma espécie de perigo em tudo o que é desconhecido. há sempre aqueles capítulos que nos correm menos bem e é certamente por isso que se arrastam, uma espécie de tormento que nos infligimos sem querer, sendo que o sofrimento não é uma escolha, o sofrimento é orgânico e inconsciente, apenas se manifesta de diferentes maneiras consoante o sofredor. e sendo que é tudo irracional, como ignorar o cansaço que nos desafia, fintar o desânimo de não ter-a-certeza-que-amanhã-vai-tudo-ser-melhor... muitas vezes apetece encostar às boxes, como um cavalo cansado de correr. também existem aqueles capítulos que parece que começam bem e afinal não estamos a começar nada. outros há que nunca começam e que insistimos em querer compreender porquê. os sinais, ai os sinais...


boca infame
não existe nem regra nem fórmula para escrever um bom capítulo nas páginas do nosso livro. escreve, apenas. como uma pena, de mão livre. escreve apenas porque gostas de escrever, porque te dignifica, porque te coloca no centro do teu eu, no comando da tua vida, pelo menos naquilo que podes comandar e os teus desejos podes consegui-los. escreve com palavras bonitas e feitas, longas ou efémeras, mas deixa que o capítulo se estenda no tempo tanto quanto assim o coração o determinar. esquece tudo o resto porque não vai fazer diferença - as coisas são porque têm de ser, só por isso. e não falo em conformismo, e sim em desígnio. desilude-te do acaso e de outras desculpas, é o querer que vai determinar quantas são as linhas do teu capítulo.


smell the roses
há alturas em que não sai nada. nada. tudo parecem verdades la palisse, frases que já foram ditas e escritas por alguém que viveu num passado que aprendemos na escola. mas pensando bem, a vida não tem assim tantos segredos. basta estarmos atentos para perceber que há uma ordem natural das coisas que nem sempre vai ser clara ou evidente, que vai dar voltas e voltas até chegar ao sítio onde tem de chegar, que nos vai consumir e entrelaçar-se com outras vidas que, à partida, não fazem qualquer sentido combinadas com a nossa (mas porquê?... pára de perguntar porquê à vida). quando for hora, saberás mudar de página, começa outro capítulo. lá atrás, naquelas maravilhosas páginas que escreveste, sim, maravilhosas porque são tuas, deixaste-as livres para ser quem são, deixaste-as soltas, lá atrás estão as recordações e os elos que vamos entender um dia. talvez. como os copos de champagne.


toca-e-foge
não és tu, sou eu. ali estava ela, sentada em frente a mim. não és tu, sou eu. os seus lábios eram vermelhos, humedeciam com facilidade e fazia com que as palavras se misturassem, apetecia-me tanto beijá-la ao mesmo tempo que sabia que o que ia dizer a seguir era uma desilusão para mim. uma mulher inteligente jamais diria algo tão insultuoso. mas disse. e repetia-o, disfarçado nas mais diversas desculpas, um ror de frases feitas e previsíveis. eu permanecia absorvido pelos seus lábios e confesso, pelo desejo de entrar dentro dela. mas ela continuava. não és tu, sou eu. deixei que continuasse, provavelmente sentia-se na obrigação de aliviar a sua consciência, ou talvez achasse que me faria sentir melhor, por favor, eu só pensava numa coisa naquele momento - possuí-la. já que nada mais ela queria de mim depois de me atormentar os sonhos. afinal, ela adorava clichés.


(a voz que te diz o que já sabias)
mas é tão claro que não és tu. isto não é sobre ti, é só e exclusivamente sobre mim, sobre as páginas de um novo capítulo que comecei a escrever, algumas notas de rodapé ainda por arrumar, mas que escrevo todos os dias, um a seguir ao outro, fielmente ao que contam. é sobre mim porque me deixo ir quando acredito que é assim que se descobrem pessoas e emoções, que se vivem momentos sublimes, que se nos aperta algo entre o peito que se chama ansiedade e que nos faz sentir vivos. é sobre mim porque eu escolho acreditar, eu escolho driblar as minhas expectativas, geri-las ao sabor dos acontecimentos. não és tu, sou EU. eu sou dona da minha vontade. e que privilégio tão doce de que nunca poderei abdicar.

Tuesday, September 25, 2012

por Ana Rebelo

nervos em frança


terçolho
estou atrasada na escrita, eu sei. permiti-me a isso, eu escrevo sempre em cima da pressão de tudo o que me acontece ou que gostaria que acontecesse ou que não aconteceu de todo. não se iludam, nem sempre as palavras são reais, sequer tão reais quanto aquilo que quem as lê deseja. ou quem as escreve, iludidas. e pronunciá-las então, há quem não lhes confira qualquer dignidade só porque são fáceis de dizer. mas tudo acaba por dar certo, para quê preocupar-me? é assim a vida, como as palavras, acabam por sair e ter significado para alguém em algum momento, fazendo a vida acontecer. por vezes há um bloqueio inevitável que se entrepõe entre o deve-e-o-haver e que inviabiliza um resultado imediato. mas que não invalida que não vá ser bom. talvez este seja um desses casos.

otite
depois tem sido a semana toda nisto. a t(e)su, o passos coelho, a t(e)su, a austeridade, a t(e)su, as mamas da Kate. proliferam os post zangados no facebook, repetem-se os cabeçalhos dos jornais e os separadores do telejornal. mais do que a t(e)su, o passos coelho, a austeridade e as mamas da Kate (umas mamas perfeitamente normais), acho que estamos a entrar num modo repeat-after-me como se a cassete nos fizesse sentir melhor. "Worry is like a rocking chair, it gives you something to do but get's you nowwhere." a não ser ao que parece que é mas não é. nunca é e não vale a pena tentar entrar onde não somos chamados mesmo que assim nos possa parecer, os sentidos também se enganam, então para quê preocupar-me? se ninguém se importar com estas palavras elas perder-se-ão no seu significado.

língua comprida-conversa da tanga
time-is-over-rated. há-de haver tempo dependendo do que queremos dele. é mesmo a vontade que conta. o tempo só nos gere quando deixamos, invariavelmente, e se deixamos, seremos os seus eternos escravos mais fieis (1º paradoxo). tenho tentado prioritizar, pensar no sonho, planear o sonho, viver o sonho. seria bom que tudo funcionasse como num cronograma, com datas de lançamento e as várias fases e hora certa para go live. mas normalmente os sonhos não acontecem assim, sem algum imprevisto, sem algum risco e sobretudo, sem a mínima ideia se alguma vez vamos acordar para ele. dá tanto trabalho sonhar!... e é quase tão perigoso tentar evitá-lo quanto inevitável que ele aconteça (2º paradoxo).

garganta
ela vai à janela e penteia-se. é loira. penteia os cabelos, não muito compridos, penteia e penteia, frenética, de cabeça para baixo e sem se importar com quem possa estar a ver, como eu. e continua, penteia-se como se os cabelos fossem nascer mais depressa, quem sabe é por isso mesmo. ela vai para a janela e deixa que caiam os cabelos que a escova já não agarra, as ideias que a cabeça já não cultiva. as ideias e os quereres que já não são quereres, são as mentiras, as mágoas, as vezes que forem, e a escova penteia-lhe os cabelos como se nada estivesse perdido. engasga-se na sua própria generosidade, convencendo-se de que nunca mais lhe tocarão num fio de cabelo.

bofetada-sem-mão
já vai tarde, este meu atraso. esta minha falha. este meu incumprimento. escrever tem destas coisas e como eu já disse atrás, se ainda estás aí, há alturas em que há vida que tem de ser vivida sem tempo para escrevê-la primeiro. é hora de tirar a maquilhagem. primeiro, passo o sabão e depois o tónico e só depois aquele creme que ajuda a prevenir as rugas. e quando acordar amanhã, a minha pele vai parecer a de um bebé, como se tivesse acabado de chegar ao mundo e que não faz a mais pequena ideia do que se vai passar a seguir.

(o buraco da ansiedade)
"This blinding kiss breaths helium into my heart
and erases the embraces of all other lovers
with a kiss...(...)

in 'Helium Reprise', Orton/Watchel/Waits 1999